Uma breve história sobre o racismo no Brasil

0
3264

Falar sobre raça é essencialmente falar sobre desigualdade. A desigualdade e o racismo podem ser expressos em dados estatísticos e quantificado matematicamente, mas sua explicação está na compreensão da sociedade e de seus inúmeros conflitos.

Não pretendemos com este artigo aprofundar detidamente nas camadas que permeiam o racismo estruturado em nossa sociedade. Pretendemos trazer uma conscientização sobre este fenômeno e como ele se perpetua, enraizado em nossa sociedade devido ao seu “aculturamento”. 

Liberdade?

Do ponto de vista teórico, o racismo, como processo histórico e político, cria condições sociais para que direta ou indiretamente grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistêmica.

Tomemos por exemplo a Lei que aboliu a escravidão. Formalmente libertou o povo negro, mas materialmente não trouxe nenhum tipo de política pública para garantir direitos à população negra escravizada por mais de 400 anos. O povo negro foi liberto, mas não teve acesso a direitos básicos como educação, direito à terra, à distribuição de riquezas, saúde, oportunidades. Tais direitos estavam condicionados às posses e rendimentos, o que impediu o povo liberto em ter acesso.  

Lembramos que, apesar da Constituição do Império de 1824 determinar que a educação fosse um direito de todos os cidadãos, a escola estava vetada para pessoas negras escravizadas. Em 1830 vigia o Código Criminal do Império que criminalizava o a conduta dos “vadios e mendigos”. Havia a lei de terras de 1850 que extinguia a apropriação de terras com base na ocupação e dava ao Estado o direito de distribuí-las somente mediante a compra. Em 1890 tínhamos o Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, conhecido como Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, criminalizando a prática da capoeira.

Tais fatos demonstram que no final do século XIX, negros libertos começaram a ser presos por “vadiagem” e qualquer outro motivo banal e sem perigo para a sociedade. E daí surge à infeliz condição de se colocar os presos para trabalhar para o Estado, isto porquê, no art. 295 do Código Criminal do Império de 1830, havia previsão de pena de “prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias” quando “não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir”.

A criminalização de condutas como vadiagem, mendicância, embriaguez, da prática da capoeira, a perseguição da cultura Africana, da religiosidade, visavam encalçar as camadas mais pobres e despossuídas da população brasileira, numa prática odiosa de higienização social.

Esse tipo de “aculturamento” segregatório foi se tornando cada vez mais comum aos olhos da sociedade. O encarceramento e extermínio em massa da população negra são um retrato desta realidade iniciada desde o Século XVI quando o primeiro negro foi sequestrado nas praias da Guiné Africana.

Uma questão social

A subjugação da raça negra promovida pelo colonialismo europeu foi perpetuada ao longo da história do Brasil, não só nas Leis, mas, principalmente, inscrita socialmente nos modelos de urbanização e nas justificativas arquiteturais e higienistas. O reflexo da política criminal, a crise na segurança pública, a perpetuação das ciências racista sob a perspectiva de Nina Rodrigues e Cesare Lombroso, a política da meritocracia para pessoas não negras. Tudo isso firma dentro da nossa sociedade uma hierarquização das raças, de modo que a população branca não consiga ver a população negra e indígena dentro da sua perspectiva de humanidade, e por isso sentem-se naturalmente privilegiadas.

O racismo sustenta essa hierarquia e permite que o processo de encarceramento em massa da juventude negra venha dar continuidade ao genocídio. Essa seletividade penal promovida pelo “aculturamento” segregatório revela que a população negra é a mais vulnerável.

Um estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia entre os anos de 2016 a 2018, analisando-se mais de dezessete mil prisões em flagrantes, revela que 98% das pessoas presas em flagrantes são negras e, desses 98%, menos de 4% portava qualquer arma e menos de 40% eram soltas após a audiência de custódia.

Esse sistema coloca o negro sempre como suspeito até que se prove o contrário. Dentro desse projeto colonizador a população negra vive em constante subjugação, esses números são frutos de uma política sistemática, uma crise cultural que veio se perpetuando ao longo da história.

Movimentos sociais

Somente no século XX os movimentos sociais assumiram um protagonismo político. Além da luta política, os movimentos sociais formaram intelectuais com vertentes liberais, existencialista e marxista. No Brasil, tiveram grande participação na construção dos direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição de 1988 e nas leis antirracistas, com a Lei 10.639/2003, as de cotas raciais nas universidades federais e no serviço público, no Estatuto da Igualdade Racial.

O investimento na educação, não só nas cotas raciais, mas também na educação básica infantil é fundamental para a promoção da igualdade racial. O investimento em programas educacionais que tenham por objetivo levar educação de qualidade para crianças, principalmente na educação básica, é o único caminho a se seguir para enfrentamento deste estruturalismo.

Para a professora e filósofa socialista estadunidense Angela Davis, o conhecimento torna uma criança inadequada para a escravidão. E graças à sororidade entre as mulheres negras e brancas, levou-se ao nascimento de realizações transformadoras no ramo da educação. (Davis)

Professora e filósofa socialista estadunidense Angela Davis. Crédito: divulgação

Em 2000, a UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) já havia adotado cotas sociais (50% para egressos de escolas públicas) e, em 2012 tivemos a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, validando a constitucionalidade de programas de ação afirmativa para reservas de vagas para negros.

Também tivemos a aprovação da Lei nº 12.711, dispondo sobre reserva de vagas para o ingresso nas universidades federais e institutos federais de ensino técnico de nível médio. Ou seja, ainda que tardiamente, cada vez mais negros estão se formando nas universidades consideradas de ponta e reconhecidas como tradicionais. Por consequência disso, uma mão de obra emergente e qualificada se apresenta para o mercado de trabalho.

Longe da igualdade

Apesar desse pequeno, porém louvável avanço, ainda assim a população negra não está em pé de igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. O desafio de trabalhar as relações raciais e de gênero, interseccionadas, em instituições públicas ou privadas, esbarra no pacto narcísico, não verbalizado, de fortalecimento entre “iguais”.

As escolhas frequentemente recaem sobre um mesmo perfil de pessoas, principalmente se os lugares forem de liderança, tomada de decisão e poder. Mulheres negras em cargos de chefia em empresas é raridade como explica a psicóloga e ativista Cida Bento, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), o qual atua na redução das desigualdades raciais e de gênero no ambiente de trabalho.

As negras, em especial, com os menores salários e taxa de desemprego duas vezes maior que a dos homens brancos, são as principais prejudicadas, trabalhando em ocupações com menor proteção social, sem carteira, como terceirizadas ou no emprego doméstico. Por outro lado, cabe salientar que, de acordo com os dados obtidos nos censos realizado em grandes instituições, mulheres negras que se encontram em processo de ascensão fizeram uso de bolsas de estudo, num percentual 30% maior do que os outros grupos.

Mais do que nunca, vale ressaltar, é a primeira vez no Brasil que jovens negros e negras são maioria nas universidades federais — fruto das ações afirmativas da última década— pressionando por oportunidades qualificadas no mercado de trabalho.

A defensoria pública da Bahia, como exemplo de boas práticas, promoveu verdadeira ruptura de paradigma ao reservar 30% das vagas do concurso público no ano de 2016 para pessoas negras.

Leia mais: Você sabia que esses termos são LGBTQIA+fóbicos?

Tanto nas esferas públicas quanto na privada a adoção de boas práticas como a garantia de equidade racial deve ser o ponto central dos debates. Desde a identificação dos obstáculos e alavancadores da equidade, até a elaboração de um plano de ação para assegurar o tratamento da igualdade racial em todas as dimensões institucionais; implementar uma metodologia que incorpore nos programas, as perspectivas de mulheres e negros; o financiamento de bolsas de estudo, projetos culturais, investimento nos movimentos antirracistas, criação de comitês que permita ser sempre debatido a diversidade nas empresas, são exemplos a serem adotados.

É hora de ação

Protestos na Europa. Crédito: divulgação.

As mudanças somente acontecem quando saem do mundo das ideias e passam a fazer parte do nosso cotidiano. Para as instituições que realmente se preocupam com a temática racial é dever investir representatividade, oportunidades, fortalecimento das políticas públicas, investimento na saúde e educação.

Criar políticas internas que visem: promover igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo, por exemplo, na publicidade; remoção de obstáculos para a ascensão das minorias em posição de direção e de prestígio na instituição; manutenção de espaços permanentes para debates e eventual revisão de práticas institucionais.

Esse debate não se esgotará hoje. É preciso conscientização entre os povos. A luta contra o racismo não diz respeito apenas às pessoas negras, as pessoas não negras também têm responsabilidade. Enquanto pessoas de várias raças vão às ruas do mundo todo gritar que vidas negras importam, na esteira do assassinato do segurança negro George Floyd, nos EUA, o Brasil ainda está despertando o espírito ativista e é preciso enfretamento nesta luta antirracista.

Livros

Para que este debate não se encerre aqui, indicamos alguns livros escritos por autoras pretas e falam sobre racismo:

– Pequeno Manual Antirracista de Djamila Ribeiro;

– Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, de Carolina de Jesus;

– Quem Tem Medo do Feminismo Negro?, de Djamila Ribeiro;

– Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis;

– Não. Ele Não Está, de Maíra Deus de Brito;

– Eu Sei Por Que o Pássaro Canta na Gaiola, de Maya Angelou;

– Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie;

– Olhos D’Agua, de Conceição Evaristo.

Artigo escrito por Camila Ferreira, advogada da SiqueiraCastro.