Por Eduardo Evangelista
O recente Decreto nº 10.946, de 25 de janeiro de 2022, deu enorme impulso às discussões sobre a disseminação da geração eólica offshore no Brasil. O normativo, que dispõe sobre “a cessão de uso de espaços físicos e o aproveitamento dos recursos naturais em águas interiores de domínio da União, no mar territorial, na zona econômica exclusiva e na plataforma continental para a geração de energia elétrica a partir de empreendimento offshore”, foi recebido por parcela significativa dos agentes do setor elétrico como um avanço relevante para a consolidação do arcabouço jurídico-regulatório necessário para garantir segurança jurídica à implantação e exploração de empreendimentos dessa natureza.
Vale lembrar, em retrospecto, que há duas décadas o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica – PROINFA, instituído pela Lei nº 10.438/2002, abriu o caminho para a introdução das energias renováveis na matriz energética brasileira, incluindo a eólica, visando fortalecer a segurança do suprimento, por meio da diversificação e complementaridade das fontes, as quais, todavia, por dependerem de fatores naturais, não podem contar com a previsibilidade característica das usinas despacháveis.
Mas a fonte eólica, na modalidade onshore, se desenvolveu efetivamente a partir de sua inclusão nos leilões regulados, instituídos pela Lei nº 10.848/2004 e pelo Decreto nº 5.163/2004, que permitiram a celebração de contratos de compra e venda de energia elétrica de longo prazo com as distribuidoras, viabilizando condições mais favoráveis de financiamento para sua implantação.
A disciplina regulatória do tema foi aprimorada ao longo dos anos, com foco nas centrais de geração eólica onshore, o que, todavia, não obstava a sua aplicação aos empreendimentos offshore, com alguns ajustes, quando fosse o caso. Assim, por exemplo, não seriam necessárias normas específicas para o estabelecimento dos requisitos e procedimentos necessários à outorga de autorização pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL para exploração e/ou alteração da capacidade instalada de usinas eólicas, ou a definição dos deveres, direitos e outras condições gerais aplicáveis às outorgas de autorizações para geração de energia elétrica em regime de produção independente ou autoprodução.
Mas há distinção relevante entre as eólicas terrestres e marítimas, na medida em que as usinas onshore são implantados em terra, normalmente em áreas particulares, enquanto os empreendimentos offshore são explorados em áreas públicas, que incluem o mar territorial, a zona econômica exclusiva e a plataforma continental, contexto em que o Decreto nº 10.946/2022 veio justamente para regulamentar a utilização desses bens públicos, a partir do conceito, da classificação e dos contornos de sua utilização por particulares, nos termos da Constituição Federal e da legislação ordinária aplicável.
Em linhas gerais, o Decreto nº 10.946/2022 definiu que a outorga das áreas marítimas para a exploração das eólicas offshore se dará por meio da celebração de contrato administrativo de cessão de uso, por iniciativa do Ministério de Minas e Energia – MME, através da oferta de áreas previamente delimitadas (“cessão planejada”), ou por iniciativa de interessados em explorar áreas específicas (“cessão independente”).
A cessão de uso para a implementação de projetos de geração offshore será sempre onerosa, ficando a cargo do empreendedor a realização dos estudos necessários para identificação do respectivo potencial energético, sob critérios e prazos definidos pelo MME, se já não houver estudos prévios elaborados pela Empresa de Pesquisa Energética – EPE ou outras fontes certificadas. Por outro lado, é possível a obtenção de cessão de uso gratuita, para a realização de atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
Por fim, aspecto relevante, que chama a atenção no Decreto, é o estabelecimento da necessidade de serem consultados previamente diversos entes, como condição para que seja celebrada a cessão de uso, como os Comandos da Marinha e da Aeronáutica, os ministérios do Turismo, da Agricultura e da Infraestrutura, além das agências reguladoras, ANP e Anatel. Não sem razão, há certo receio de que o processo se torne demasiadamente burocrático, urgindo a criação de regulamentos que padronizem os procedimentos e tornem mais fluído e objetivo o caminho a ser trilhado para a viabilização da outorga.
Ainda há diversos aspectos em aberto que precisam ser considerados e equacionados até que o ambiente de negócios esteja completamente favorável à implantação das centrais eólicas offshore no Brasil, sobretudo no tocante à regulação técnica do tema, que inclui itens como o estabelecimento de critérios para a definição dos limites máximos de interferência considerando a extensão das áreas, a adequação dos procedimentos de rede e/ou distribuição, com vistas à conexão das usinas marítimas e até mesmo a formulação de políticas públicas de incentivo à expansão da fonte, se se entender que é o caso. Ademais, não se pode esquecer do enfrentamento das questões ambientais, bem como das relacionadas à necessidade de capital intensivo, dois aspectos sabidamente mais complexos da tecnologia offshore em comparação à onshore.
No entanto, parece haver consenso quanto à atratividade desse nicho, cujo potencial mapeado pela EPE aponta para 700 GW, considerando águas com profundidade de até 50 metros, e que tem, entre suas vantagens, um maior fator de capacidade, menos suscetibilidade à turbulência dos ventos, possibilidade de instalação perto dos centros de carga, como, por exemplo, no litoral dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e de grandes capitais nordestinas, além da possibilidade de sinergia com a indústria naval brasileira e a de óleo e gás marítimos.
Além disso, conta-se com a experiência internacional, sobretudo do Reino Unido, da Alemanha e da China, que juntas detêm cerca de 90% da capacidade instalada das eólicas offshore em operação no mundo. Com efeito, além do know how, que certamente será aproveitado no Brasil, a expansão dessa modalidade de energia renovável em escala mundial contribuirá para a redução dos custos de produção – como ocorreu com outros segmentos elétricos, a exemplo do solar fotovoltaico –, o que se somará à evolução da regulação, com vistas à mitigação das incertezas e, consequentemente, à diminuição da percepção de riscos dos agentes, viabilizando, assim, novos investimentos. Nessa ordem de ideias, considerando que, em regra, a implantação das eólicas offshore costuma levar entre 6 e 7 anos, são boas as perspectivas de que os primeiros projetos saiam do papel até o final da década em curso ou início da próxima.