Limites da responsabilização das concessionárias de transporte ferroviário

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Muito se questiona sobre até que ponto há o dever de indenizar pessoa que sofre acidente nas linhas férreas. Ao analisar cada caso concreto, nota-se que há diferentes causas que resultam em um acontecimento dessa natureza nos trilhos, sendo algumas delas passíveis de responsabilização e outras não.

Em primeiro lugar, cabe-nos compreender que a responsabilidade civil dessas prestadoras de serviços se dá de forma objetiva, vide o art. 37, §6º da Constituição da República[1], o que significa dizer que não há necessidade de comprovação de dolo ou culpa da concessionária de transporte.

Em que pese não ser necessária a comprovação dos elementos subjetivos acima descritos, deve haver a comprovação dos elementos objetivos, quais sejam: a conduta, o dano e o nexo causal.

Comprovados todos esses elementos é possível, com base na teoria do risco administrativo[2], que haja a exclusão da responsabilidade das prestadoras nas hipóteses de culpa exclusiva da vítima, culpa exclusiva de terceiro ou caso fortuito e força maior.

Há ainda a possibilidade de culpa concorrente, que é não uma causa de exclusão de responsabilidade, mas sim uma causa de redução desta. A culpa concorrente consiste na soma da culpa da prestadora de transporte mais a culpa do particular envolvido, que resultaram no evento danoso.

Afinal, a concessionária de serviços públicos de transporte rodoviário deve se responsabilizar por qualquer acidente cometido nas linhas férreas? O Superior Tribunal de Justiça entende que não.

Ao julgar o AgRg no AREsp 676392/RJ[3], o STJ definiu uma tese para ser aplicada aos processos que discutam questão de direito idêntica, no sentido de que a responsabilidade dessas empresas é constante, salvo se cabalmente comprovada a culpa exclusiva da vítima.

 Em outras palavras, se, por exemplo, um passageiro ou terceiro alheio ao serviço tropeça e cai na linha férrea e é atropelado por uma composição, a prestadora do serviço tem o dever de indenizar, desde que comprovados os elementos objetivos acima tratados.

O que não ocorre, por exemplo, em situações em que há a prática do “surf no trem” ou quando o usuário pula os muros da estação para entrar pelos trilhos e não pagar a tarifa. Nesses casos, fica clara a caracterização da culpa exclusiva da vítima, situação de excludente de responsabilidade.

Existe ainda uma situação peculiar, porém bastante comum, onde a prestadora do serviço público não tem o dever de indenizar, que é quando da queda em linha férrea em decorrência de mal súbito.

De acordo com o informativo 741 do Superior Tribunal de Justiça, a queda de passageiro em linha férrea por mal súbito, inclusive pela não utilização dos sistemas modernos de “portas de plataforma” (Platform Screen Doors – PSD), caracteriza o chamado fortuito externo[4], que significa o evento imprevisível e inevitável. Esse foi o entendimento adotado no julgamento do REsp 1.998.206-DF[5].

Na seara específica da queda por mal súbito, cumpre destacar que não há o entendimento no CDC existe um “dever específico de prevenir o evento letal por todos os meios de que possa conceber o conhecimento humano e de que esteja à sua altura fazê-lo e desde que ainda não seja caso de impossibilidade material”, nas palavras do STJ.

Outrossim, o defeito aludido no art. 14, §1º do Código de Defesa do Consumidor não pode ser compreendido no risco inerente ao serviço prestado, de modo que não há que se falar, sob nenhuma fundamentação legal, em responsabilização nesta situação.

Já em outro aspecto, temos a responsabilidade por culpa concorrente. De acordo com o Tema 518 do STJ, proveniente do julgamento do AgRg no AREsp 724028/RJ[6], o atropelamento de pedestre em via férrea quando a concessionária não cercar e fiscalizar os limites da via férrea em locais urbanos e populosos, cumulado com a conduta imprudente da vítima ao atravessar a linha férrea em local inapropriado, gera a redução da indenização por dano moral pela metade.

Assim sendo, podemos entender que o dever de indenizar pelas concessionárias de serviço público de transporte ferroviário irá depender de como se deu o dano, devendo ser analisado o caso concreto à luz dos precedentes judiciais já existentes a respeito do assunto e das manifestações doutrinárias acerca da responsabilidade civil dessas empresas.

Escrito por Ricardo Patrick Alvarenga de Melo, advogado da SiqueiraCastro.


[1] § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

[2] O risco administrativo torna o Estado responsável pelos riscos de sua atividade administrativa, mas não pela atividade de terceiros, da própria vítima ou de fenômenos naturais, alheios à sua atividade. Conforme a doutrina de Cavalieri Filho se “o Estado, por seus agentes, não deu causa a esse dano, se inexiste relação de causa e efeito entre a atividade administrativa e a lesão, (…) o Poder Público não poderá ser responsabilizado”. (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2008. p.253).

[3] A despeito de situações fáticas variadas no tocante ao descumprimento do dever de segurança e vigilância contínua das vias férreas, a responsabilização da concessionária é uma constante, passível de ser elidida tão somente quando cabalmente comprovada a culpa exclusiva da vítima.

[4] “A diferença entre caso fortuito interno e externo é aplicável, especialmente, nas relações de consumo. O caso fortuito interno incide durante o processo de elaboração do produto ou execução do serviço, não eximindo a responsabilidade civil do fornecedor. Já o caso fortuito externo é alheio ou estranho ao processo de elaboração do produto ou execução do serviço, excluindo a responsabilidade civil.” (GAGLIANO, Pablo Stolze, PAMPLONA FILHO).

[5] Considera-se fortuito externo a queda de passageiro em via férrea de metrô, por decorrência de mal súbito, não ensejando o dever de reparação do dano por parte da concessionária de serviço público, mesmo considerando que não houve adoção, por parte do transportador, de tecnologia moderna para impedir o trágico evento.

[6] No caso de atropelamento de pedestre em via férrea, configura-se a concorrência de causas, impondo a redução por dano moral pela metade quando: (i) concessionária do transporte ferroviário descumpre o dever de cercar e fiscalizar os limites da linha férrea, mormente em locais urbanos e populosos, adotando conduta negligente no tocante às necessárias práticas de cuidado e vigilância tendentes a evitar a ocorrência de sinistros; e (ii) a vítima adota conduta imprudente, atravessando a via férrea em local inapropriado. (Tese julgada sob o rito do art. 543-C do CPC/73 – Tema 518 – AgRg no AREsp 724028/RJ).