É promulgada a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas correlatas de intolerância

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Na última terça-feira, dia 11 de janeiro, foi finalmente promulgada a Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, encerrando-se a última etapa do complexo processo de incorporação do tratado internacional à ordem jurídica brasileira.

A Convenção foi firmada na 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), na Guatemala, em 2013, e aprovada pelo Congresso Nacional quase 10 anos depois (19/02/2021). Isso ocorreu mediante o rito previsto no art. 5º, §3º, da Constituição Federal, que confere aos tratados internacionais de direitos humanos status hierárquico equivalente ao de emenda constitucional.

Assim, com a promulgação pelo presidente da República, ela passou a fazer parte da Constituição Federal, juntamente com a Convenção da ONU sobre Direito das Pessoas com Deficiência, seu protocolo facultativo, e o Tratado de Marraquexe, também internalizados mediante o quórum qualificado.

“Década Internacional de Afrodescendentes”

A incorporação do documento pelo Brasil ainda dentro da “Década Internacional de Afrodescendentes”, assim declarados pela ONU os anos de 2015 a 2024, pode ser considerada uma grande vitória e merece ser celebrada. Sobretudo ao lembrarmos que o nosso País foi um dos principais destinatários do deslocamento forçado da população negra e um dos últimos a abolir a escravidão no continente, sem que, por outro lado, fossem desenvolvidas políticas públicas, ações afirmativas e legislações atentas à demanda latente da promoção e proteção dos direitos humanos das pessoas negras. Não à toa o racismo permanece sendo uma das questões sociais mais presentes e, ao mesmo tempo, mais negligenciadas.

A relevância do documento para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária é notória dada a sua completude, clareza e assertividade.

Em poucas páginas, elucida conceitos, alguns deles ainda pouco conhecidos para a população em geral. Um exemplo é a discriminação racial indireta, que ocorre quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base na raça, cor, ascendência ou origem nacional/étnica.

Além disso, o documento lista uma série de compromissos que o Brasil assumiu, detalhando instrumentos específicos a serem incorporados pelo Estado para promover a igualdade racial e enfrentar o racismo em todas as suas nuances.

Rio de Janeiro – Em ato Contra o Genocídio da Juventude Negra, manifestantes protestam contra a morte de cinco jovens negros por PMs em Costa Barros, na zona norte (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Nesse sentido responde à uma série de questões sensíveis à pauta: violência policial, o acesso à justiça e a falta de representatividade nas instâncias de poder. Por fim, apresenta mecanismos de monitoramento da implementação das obrigações pactuadas, do qual se destaca a criação do Comitê Interamericano para a Prevenção e Eliminação do Racismo, Discriminação Racial e Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, essencial para garantir que as promessas normativas se tornem, de fato, realidade.

Implicação nas atividades empresariais

Vale lembrar que o racismo já é crime no Brasil há muito tempo, conforme prevê a Lei 7716/89 – inclusive, imprescritível. De qualquer forma, é inegável que o tratado introduz deveres mais rigorosos de controle, vigilância e punição tanto das autoridades públicas, como também dos agentes privados que cometam qualquer tipo de discriminação racial. Bem como traz outras formas de promover a equidade racial e a tolerância, que não seja pela via da repressão penal.

Da análise do documento, merecem destaque alguns compromissos específicos assumidos pelo Estado brasileiro que podem implicar, em alguma medida, a atividade empresarial:

– A previsão de eliminar e punir qualquer apoio público ou privado a atividades racialmente discriminatórias e racistas ou que promovam a intolerância, incluindo seu financiamento. Nesse aspecto, vale o alerta especial às empresas que recebem subsídio fiscal ou promovem/são beneficiadas com qualquer forma de financiamento no sentido de adotar, o quanto antes, todas as medidas necessárias para corrigir eventuais ofensas dessa natureza.

Comprometimento de eliminar e punir a publicação, circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio de comunicação, inclusive a internet, de qualquer material racista ou racialmente discriminatório. Tal previsão só confirma a já conhecida necessidade das empresas – com urgência – adequarem suas comunicações oficiais aos parâmetros convencionais. Nesse sentido, revela-se eficiente a criação de um departamento/cargo voltado a realizar este filtro, certificando-se que ao publicar um texto não está veiculando nenhum material de conteúdo inapropriado e desalinhado com a promoção da igualdade racial.

– Compromisso de proibir a restrição ou limitação do uso de idioma, tradições, costumes e cultura das pessoas em atividades públicas ou privadas, o que, em um âmbito mais interno, reitera a imprescindibilidade da empresa em adotar política institucional tolerante, que acolhe a diversidade dos seus colaboradores e garante a livre manifestação da sua cultura. Nesse ponto, a implementação de “hot lines” a fim de propiciar canais de denúncia aos funcionários que sejam alvo de discriminações parece ser uma alternativa bastante adequada.

Dever de eliminar e punir a restrição do acesso a locais públicos e locais privados franqueados ao público baseada na raça, cor, ascendência ou origem. Quanto a isso, mostra-se essencial que a empresa adote providências no sentido de orientar os funcionários, sobretudo dos responsáveis pela segurança dos estabelecimentos, eventualmente elaborando cartilhas explicativas, a fim de impedir que este tipo de conduta discriminatória venha à tona.

Fica claro, portanto, que a incorporação da Convenção ao ordenamento jurídico interno repercute diretamente nas políticas corporativas e nos cuidados que devem ser tomados pelas empresas. Recomenda-se que fiquem ainda mais atentas à forma como conduzem suas atividades, atendem às demandas dos seus funcionários, orientam seus funcionários, emitem os seus comunicados e se posicionam na mídia. Bem se sabe que a responsabilização penal da pessoa jurídica no Brasil é limitada aos crimes ambientais, e que a condenação de pessoas físicas depende do preenchimento dos rigorosos requisitos do tipo penal. Assim, não ficou claro, até o momento, de que forma ocorrerão as punições de que trata a Convenção, tampouco quais os meios legítimos a serem utilizados para monitorar as condutas que se pretende eliminar. De todo modo, a erradicação do racismo e a promoção da tolerância é pauta urgente e não vale a pena esperar para se adequar aos novos parâmetros constitucionais.

Análise da advogada Lívia Fabbro Machado (lfabbro@siqueiracastro.com.br), do setor Penal Empresarial.