Está em tramitação no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 3.278/2021 (“PL nº 3.278/2021”), de autoria do ex-senador e atual ministro do Tribunal de Contas da União, Antônio Anastasia, que tem por objeto a reforma da Lei nº 12.587/2012 (a “Lei de Mobilidade Urbana” ou “LMU”). O projeto de lei conta com o apoio de entidades representativas das empresas de transporte coletivo urbano, que são as mais afetadas pelo cumprimento defeituoso, ou pelo não-cumprimento, da LMU em sua redação atual (em especial quanto ao financiamento dos serviços, matéria disciplinada pelo art. 9º, que já foi objeto de um estudo específico meu[1]).
O PL nº 3.278/2021, conforme consta da sua justificativa, pretende ser a resposta à “queda constante de produtividade e qualidade do transporte público nas cidades”, problemas que seriam causados pelos “congestionamentos de trânsito nas cidades; a falta de prioridade para o transporte público no sistema viário; a inexistência de uma política tributária diferenciada sobre os serviços e insumos básicos do setor; o transporte ilegal de passageiros (…); a diferenciação (sic) entre a tarifa pública, cobrada do usuário, e a tarifa de remuneração do operador, bem como o descumprimento rotineiro de cláusulas contratuais, principalmente as referentes ao equilíbrio econômico-financeiro da concessão”[2].
Podemos questionar tais problemas seriam decorrentes da “desatualização” da LMU em sua redação atual ou da resistência dos municípios e Estados em aplicá-la, havendo fundadas razões para que se conclua que é esta, e não aquela, a sua real causa. Apenas um exemplo: não é a “diferenciação” entre tarifa pública e tarifa de remuneração a causa do desequilíbrio econômico-financeiro que é hoje praticamente generalizado e crônico nas concessões de transporte coletivo, mas, sim, o desrespeito ao art. 9º, §5º, da Lei nº 12.587/2012, que estabelece que, em caso de déficit de cobertura da tarifa de remuneração pela arrecadação da tarifa pública, o poder concedente deve garantir subsídios ao operador. Mas, admitindo-se que o PL nº 3.278/2021 esteja certo em seu diagnóstico — o de que os serviços de transporte público coletivo sofreram queda de produtividade e qualidade nos últimos anos —, a pergunta que se deve fazer é: o seu conteúdo é apto a solucionar o problema? Aqui é que me parece que o projeto de lei desaponta. As razões são as seguintes.
O projeto propõe novas definições para o art. 4º da LMU. O problema inicial com as definições, em qualquer documento legislativo, é saber se elas possuem um caráter descritivo ou prescritivo. Em outras palavras: se pretendem descrever um fenômeno do mundo real ou formular um conceito normativo para conformar o mundo real (proibindo, permitindo ou impondo condutas). Isso não é trivial.
Se tomarmos, por exemplo, como prescritivas as definições de “rede básica de transporte coletivo” e de “transporte público coletivo complementar”, do projeto de lei, haveremos de concluir que cada sistema de transporte coletivo urbano deve conter uma rede básica de linhas (convencionais, expressas e troncais) e uma rede auxiliar (ou alimentadora). Embora esse arranjo possa fazer sentido, inclusive em termos de engenharia de transportes, para sistemas complexos, como os de grandes centros urbanos, ele certamente não será adequado (ou mesmo aplicável) a sistemas menores e mais simples, que são os da grande maioria dos municípios brasileiros. Aqui nos parece que o projeto não distingue bem uma coisa (definição descritiva) da outra (definição prescritiva) e isto pode levar, de um lado, a interpretações que interfiram na legítima autonomia dos entes subnacionais para definir o modelo de operações dos respectivos sistemas de transporte coletivo urbano (como no caso das definições acima referidas), e, de outro, a interpretações que tomem como meramente exemplificativas definições que só fazem sentido se possuírem um conteúdo cogente, como a do “Sistema Nacional de Informações de Mobilidade Urbana”, que o projeto de lei qualifica como uma “rede nacional contendo informações e dados (…) sob gestão da União”.
Ainda no plano das definições, o PL nº 3.278/2021 apresenta um inegável retrocesso em relação à redação atual da LMU, quando torna menos nítida a diferença entre os conceitos de tarifa pública e de tarifa de remuneração, atualmente consignados no art. 9º da Lei nº 12.587/2012. Se hoje é muito claro que, enquanto a tarifa pública é o preço político cobrado do usuário, a tarifa de remuneração é um preço contratual que reflete o valor da proposta vencedora em uma licitação, sendo devidos subsídios ao operador sempre que houver déficit de cobertura da tarifa de remuneração pela arrecadação da tarifa pública, no projeto de lei a situação é diversa.
Com efeito, no art. 2º do projeto, que introduz um novo inciso XVII ao art. 4º da Lei nº 12.587/2012, tarifa de remuneração passa a ser “o valor que cobre os reais custos de produção do serviço de transporte coletivo básico ou complementar, incluindo a remuneração do prestador do serviço”. A seu turno, a nova redação proposta para o art. 9º, caput, da LMU, qualifica a tarifa de remuneração como aquela “resultante do processo licitatório”. Ora, ou a tarifa de remuneração é, como hoje, o preço contratual resultante da licitação, ou então é um agregado de “custos reais” mais “remuneração”. E como o PL nº 3.278/2021 não dá nenhum parâmetro para definir o que sejam “custos reais” ou a “remuneração”, esses dois aspectos essenciais da operação ficam perigosamente em aberto.
A confusão aumenta ainda mais quanto se verifica, na proposta de inc. XXI do mesmo art. 4º, o conceito de subsídio como o “valor do déficit tarifário a ser complementado pelo poder público delegante com o objetivo de manter a tarifa pública cobrada do usuário abaixo do custo real do serviço prestado”. Há uma clara inconsistência no projeto de lei: o subsídio passa a ser o montante necessário para a cobertura do “custo real” do serviço e não para custeio da tarifa de remuneração, já que esta seria acrescida também da remuneração do operador. Na melhor das hipóteses, o subsídio se amesquinha e deixa de servir para reequilibrar de forma integral os contratos de concessão. É o sentido inverso do que deve ser uma reforma da Lei de Mobilidade Urbana.
Ainda com relação à definição de tarifa de remuneração como aquela que cobre os “reais custos” da operação mais a remuneração do operador, o que se produz, na prática, é a volta à vetusta ideia do “serviço pelo custo”, típica dos primeiros tempos da regulação dos serviços públicos no Brasil. A troca da lógica do serviço pelo preço — que se tornou dominante no Brasil pelo menos desde a década de 1990, com as privatizações — pela lógica do serviço pelo custo será negativa, por uma série de razões. A primeira é que premiará as operadoras ineficientes e desestimulará a busca de eficiência no setor de transporte coletivo. Se uma concessionária tem garantida uma determinada estrutura de custos, acrescida deum determinado nível de remuneração, então qual será o estímulo para a busca de ganhos de eficiência? A segunda é que a ideia de serviço pelo custo tende a diminuir a importância formal da equação econômico-financeira como aquela resultante da licitação, abrindo caminho para que, em processos de reequilíbrio econômico-financeiro, a administração sustente que os “reais custos” do serviço são diversos (e não raro mais baixos) do que aqueles suportados pelo operador. A locução “custos reais” é um conceito aberto que permite, à administração pública mal preparada ou mal-intencionada, manipular o fluxo de caixa de uma proposta, a fim de chegar ao resultado que se pretende chegar, menosprezando, na prática, o direito do particular ao equilíbrio econômico-financeiro do seu contrato de concessão.
Se o legislador quisesse introduzir a questão dos “custos reais” do serviço de forma tecnicamente adequada, bastaria estabelecer, como condição da licitação dos serviços de transporte coletivo, que os estudos de viabilidade econômico-financeira devem levar em consideração a estrutura de custos real do sistema acrescida da remuneração do operador. Trata-se de uma discussão que pertence à fase de planejamento da licitação e não à fase de execução contratual. A função regulatória de tabelas do tipo “GEIPOT” ou, mais recentemente, da ANTP, é a de sinalizar, sobretudo na fase de modelagem de projetos, quais são os preços de referência dos insumos e o seu peso relativo na operação, e não a de servir de parâmetro efetivo de equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão em execução.
Ainda quanto ao equilíbrio econômico-financeiro, a proposta do projeto de lei para o §7º do art. 9º da LMU é igualmente perigosa. Estabelece, esse dispositivo, que os processos de reequilíbrio somente serão realizados “em caráter excepcional e desde que observado o interesse público”. Ora, isto significa dar ao poder concedente uma enorme margem de discricionariedade na matéria, o que é altamente indesejável. Com efeito, para que um pedido de reequilíbrio contratual seja recusado, basta ao administrador público invocar a “inconveniência ao interesse público” para que a discussão se encerre. E o próprio acesso ao judiciário pode ficar prejudicado, já que o juiz pode compreender que a prejudicialidade ao interesse público, declarada pela administração, deve ser preservada pelo judiciário, em prestígio a uma suposta presunção de validade e legitimidade dos atos administrativos. Nesse cenário, que tem uma probabilidade razoável de ocorrer, o concessionário ficará tanto sem a tutela administrativa quanto sem a tutela jurisdicional. O seu direito ao equilíbrio econômico-financeiro, garantido constitucionalmente (art. 37, XXI), será, na prática, uma ficção.
Ainda, o PL n º 3.278/2021 propõe a inclusão do art. 10-A na LMU, para dizer que as contratações dos serviços de transporte coletivo podem se dar sob as modalidades de concessão comum, concessão patrocinada ou concessão administrativa. Como não havia dúvida doutrinária ou jurisprudencial sobre o cabimento de tais modalidades aos serviços em questão, fica a dúvida: para que criar um dispositivo apenas para reiterar o que a legislação já estabelece como possível? Um efeito deletério do dispositivo — certamente não previsto pelos autores do PL — será impedir que novas modalidades de contratações públicas se apliquem aos serviços de transporte coletivo. Como enumerar é uma forma de limitar, fica aberta a interpretação segundo a qual qualquer nova modalidade de contratação pública que eventualmente venha a ser criada não será aplicável aos serviços de transporte coletivo urbano. É amarrar, aqui sem necessidade, as mãos do administrador.
Outra reiteração de duvidosa utilidade é a contida na proposta de art. 6º, que prevê a utilização da contribuição de melhoria para financiar o sistema de transporte na hipótese de “valorização imobiliária decorrente da implantação da infraestrutura de transportes”. A contribuição de melhoria existe entre nós desde a Constituição de 1934 — encontra-se, hoje, prevista no art. 145, III, da Constituição de 1988 —, e nunca “pegou”. Gerações de administrativistas nasceram e morreram sem observar de perto nenhuma contribuição de melhoria. Além de poder ser utilizada independentemente da Lei de Mobilidade Urbana, a sua previsão no PL soa algo ingênua: não é um tributo impopular e de raríssima utilização em nossa história que vai resolver o problema de financiamento do transporte coletivo urbano no Brasil.
Ainda no plano do financiamento dos serviços, o PL nº 3.278/2021 pretende alterar a Lei nº 10.636, de 30.12.2002, que disciplina a aplicação da CIDE-Combustíveis, para estabelecer que pelo menos sessenta por cento dos recursos destinados a projetos de infraestrutura de transportes sejam aplicados em zonas urbanas. Trata-se de uma destinação que atinge os recursos que já vão para os municípios, e não que aumenta a fatia da CIDE atribuída a tais entes. De novo: apesar de bem-intencionada, tal medida tenderá a produzir um impacto próximo do nulo na disponibilidade de recursos aos serviços de transporte coletivo urbano.
Por fim, o PL nº 3.278/2021 propõe a inclusão do inciso VIII no art. 16 da Lei de Mobilidade Urbana, para incluir, entre as competências da União, “prestar assistência financeira excepcional aos Estados, Distrito Federal e Municípios na ocorrência de casos fortuitos e de força maior, visando a atender ao disposto no inciso XI do artigo 6º” — este último dispositivo tratando da “prioridade na destinação de recursos financeiros públicos emergenciais ao transporte coletivo básico e complementar na ocorrência de situação de emergência e estado de calamidade pública” como uma das diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Há aqui dois problemas. O primeiro consiste no fato de que uma promessa de ajuda futura ainda não é ajuda; o compromisso de financiamento federal dos serviços é muito tênue e, na prática, obriga muito pouco. O segundo problema é a condicionante dessa promessa de ajuda: a menção do art. 16, VIII, ao art. 6º, XI, limita a cooperação federal aos casos de emergência ou calamidade pública. Serve para situações como a pandemia de COVID-19 (sem dúvida uma hipótese relevante), mas não serve para a grande maioria dos casos em que os municípios precisariam da ajuda federal, a saber, os serviços que são estruturalmente deficitários, em que a arrecadação da tarifa pública não é suficiente para cobrir a tarifa de remuneração.
Uma reforma da Lei de Mobilidade que vise a, de fato, contribuir para melhorar a qualidade e garantir a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de transporte coletivo urbano deve refletir os seguintes objetivos: (i) reforço do direito das operadoras aos subsídios mediante a previsão de garantias em favor do particular como condição para licitação dos serviços; (ii) previsão de mecanismos, voluntários ou compulsórios (neste caso, dependendo de alteração constitucional), de transferências de competências dos municípios para Estados e/ou União em caso de inexistência de recursos para a instituição de garantias nos moldes do item anterior; (iii) previsão da criação de um fundo federal não-orçamentário, a ser gerido por instituição privada, ao qual serão incorporados bens dominicais (p. ex., imóveis não utilizados) e recursos orçamentários federais, além de bens de mesma natureza dos entes federativos que aderirem ao fundo ou, na sua falta, recursos dos Fundos de Participação de Estados e Municípios, destinado a garantir o pagamento dos subsídios às concessões de transporte coletivo urbano em todo o território nacional; e, por fim, (iv) a criação de uma instância administrativa centralizada, de composição colegiada paritária (metade dos membros indicada pelo poder público e metade por entidades representativas das operadoras de transporte coletivo), destinada à servir como última instância administrativa em discussões envolvendo equilíbrio econômico-financeiro de contratos.
O PL nº 3.278/2021, como visto, não consegue avançar na direção de tais objetivos, contribuindo, caso venha a ser aprovado, até mesmo para retrocessos na disciplina atual da Lei nº 12.587/2012.
Escrito por:
Amauri Saad
Doutor e mestre em direito administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of Toronto. Sócio de Siqueira Castro Advogados.
[1] Ver: “Subsídios em mobilidade urbana: direito dos delegatários e dever do poder concedente (considerações a partir do art. 9º da Lei Federal nº 12.587, de 03.01.2012)”, Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 19, nº 74, pp. 9-40, abr./jun. 2021.
[2] Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/149920. Acesso em 23.05.2022.