A nova resolução do CFM e o retrocesso em relação ao uso medicinal da cannabis

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O Conselho Federal de Medicina – CFM publicou, em 14.10.2022, a Resolução nº 2.324, que aprova o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa (art. 1º). O que há de novidade nessa resolução — e uma novidade preocupante — é o seu art. 3º, que proíbe aos médicos “a prescrição de canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista” na resolução (inc. I) e “ministrar palestras e cursos sobre o uso do canabidiol e/ou produtos derivados da Cannabis fora do ambiente científico, bem como fazer divulgação publicitária” (inc. II).

Tal medida causou ampla perplexidade pelo seu caráter restritivo em relação à substância, que é usada, por exemplo, como anti-convulsivo (como o próprio CFM reconhece), e pode ser uma “opção útil e relativamente não-tóxica, para o tratamento de ansiedade, insônia e dor crônica”[1],  e dos sintomas da Doença de Parkinson, entre muitas outras[2].

Reconhecendo esse fato, e o avanço das pesquisas no mundo todo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, editou, em 09.12.2019, após um criterioso processo, a Resolução nº 327, dispondo sobre os procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação, bem como os requisitos para a comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais. De acordo com o art. 5º do ato, os “produtos de Cannabis podem ser prescritos quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro”.

É nesse cenário regulatório que o CFM pretende intervir, por meio da Resolução nº 2.324/2022, que padece, conforme se verifica a seguir, de graves inconsistências.

A primeira é a evidente incompetência do CFM para disciplinar, ainda que in abstracto, a prescrição de medicamentos. Nos termos da sua lei de regência (Lei nº 3.268/1957), os conselhos federal e regionais de medicina são “são os órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica, cabendo-lhes zelar e trabalhar por todos os meios ao seu alcance, pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente”. Não há como predicar desse feixe de competências, restritas ao campo ético, uma competência autônoma para inovar originariamente na ordem jurídica, criando obrigações substantivas atinentes ao núcleo da própria profissão médica. A regulação de profissões requer lei em sentido formal, conforme estabelece a Constituição (art. 5º, XIII).

Ao restringir a discussão sobre o tema a “eventos científicos”, a resolução acaba por ferir também a liberdade de expressão, consagrada com ênfase no texto constitucional (art. 5º, IX). A própria ideia de que um profissional está proibido de falar em público sobre algo relacionado à sua profissão (à exceção, claro, dos casos de confidencialidade, como os instituídos entre médico e paciente, advogado e cliente etc.), já denota a abusividade e o caráter inconstitucional da regra. Lido em sua literalidade, o dispositivo impediria o médico de tratar do tema até mesmo na mesa de jantar, o que, com a devida vênia, representa um absurdo. E o absurdo, como se sabe, é um bom termômetro da razoabilidade ou irrazoabilidade de um ato administrativo.

Não se esqueça de que a sociedade possui um amplo interesse no assunto, inclusive porque, contra o uso do canabidiol, ainda se coloca um enorme preconceito, que associa a substância ao uso recreativo de drogas ilícitas e, mesmo, ao crime organizado. Tais concepções podem afastar muitos pacientes de um tratamento benéfico ao seu quadro clínico, razão por que é importante — na verdade, essencial — um trabalho amplo de esclarecimento, por parte da classe médica, sobretudo em eventos fora do “ambiente científico”. O que o interesse público requer, ao contrário do que parece supor o CFM, é mais, e não menos, discussão pública.

A proibição de publicidade referente ao tema também desrespeita as competências do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária, que é a entidade responsável pela disciplina da publicidade no Brasil. Uma proibição como a veiculada na Resolução nº 2.324/2022 subverte todo o sistema de autorregulação publicitária que vem sendo construído no Brasil desde a década de 1970. 

Por último, há que se destacar o flagrante conflito de competências entre o CFM e a ANVISA. É, com efeito, esta última, a entidade, dotada por lei, das competências jurídicas e técnicas para autorizar o uso, produção e comercialização de medicamentos no país (Lei nº 9.782/1999, arts. 6º a 8º), e não o CFM. E tais competências, reitere-se, já foram exercidas por ocasião da edição da Resolução nº 327/2019. Naturalmente que o juízo quanto ao cabimento do tratamento para o paciente — e, portanto, quanto ao esgotamento das alternativas disponíveis — será do médico, em face de cada caso concreto, e a decisão quanto ao seu emprego, tomada em conjunto com o paciente devidamente esclarecido. A ANVISA, a nosso ver, regula satisfatoriamente o assunto, sobretudo porque faz uma ponderação equilibrada entre os requisitos de saúde pública para a utilização da substância (basta ler a resolução para verificar todos os cuidados adotados pela agência, a fim de resguardar o direito fundamental à saúde da população e garantir o uso medicinal seguro do canabidiol), e a necessária liberdade profissional e científica do médico.

De se ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já assentou que nem mesmo lei ordinária pode substituir o processo de aprovação de medicamentos pela ANVISA[3]. Se se reconhece, às competências regulatórias da agência, uma proteção contra o próprio legislador ordinário, com muito mais razão se deve reconhecer o mesmo quando o conflito envolver outro ente administrativo.

Em face de todas essas fragilidades, o CFM comunicou, em 20.10.2022, a abertura de consulta pública, a fim de colher subsídios a respeito de uma eventual revisão da sua resolução, destacando que esta última continuava em vigor[4]. Em 25.10.2022, veio um novo recuo: foi publicada a Resolução nº 2.326, que sustou temporariamente os efeitos da Resolução nº 2.324/2022.

Tais recuos, embora bem-vindos, não resolvem a questão. A voluntária anulação da Resolução nº 2.324/2022 talvez seja o melhor caminho para preservar a legalidade e proporcionar segurança jurídica a todos os interessados (médicos, pacientes e empreendedores). A insistência em “regular” autonomamente a matéria, por parte do CFM, sobretudo se isto significar um desvio em relação à regulação editada pela ANVISA, poderá ensejar a oportuna intervenção do Judiciário, por provocação de qualquer interessado, a fim de reconduzir o CFM ao círculo de prerrogativas que lhe é reservado por lei.

Escrito por:

Carlos Roberto Siqueira Castro
Sócio Sênior da SiqueiraCastro Advogados. Doutor em Direito Público pela UFRJ e  LL.M. pela Universidade de Michigan.

Amauri Saad
Sócio responsável pelas áreas regulatória e de life sciences da SiqueiraCastro Advogados em São Paulo. Doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of Toronto.


[1]  Cf.: Peter Grinspoon, “Cannabidiol (CBD): What we know and what we don’t”, Harvard Health Publishing (Harvard Medical School), 14.09.2021. Disponível em: https://www.health.harvard.edu/blog/cannabidiol-cbd-what-we-know-and-what-we-dont-2018082414476

[2]  Cf. Lucile Rapin et. al. “Cannabidiol use and effectiveness: real-world evidence from a Canadian medical cannabis clinic”, Journal of Cannabis Research (2021) 3:19. Disponível em: https://doi.org/10.1186/s42238-021-00078-w.

[3] ADI 5779, Pleno, Rel. Min. Nunes Marques, j. 14.10.2021. Em tal julgado, o STF destaca que a “atuação do Estado por meio do poder legislativo não poderia, sem elevadíssimo ônus de inércia indevida ou dano por omissão à proteção da saúde por parte da agência reguladora, autorizar a liberação de substâncias sem a observância mínima dos padrões de controle previstos em lei e veiculados por meio das resoluções da Anvisa, decorrentes de cláusula constitucional expressa”.

[4]  Cf. https://portal.cfm.org.br/noticias/consulta-canabidiol/.