A Emenda Constitucional 123/2022 e o financiamento do transporte público

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A Emenda Constitucional nº 123, de 14.07.2022, previu, entre outras medidas, a transferência de R$ 2,5 bilhões aos municípios (e, conforme o caso, aos Estados e ao Distrito Federal), para o custeio da operação do transporte público coletivo urbano, semiurbano e metropolitano. Em seguida, foi editada a Medida Provisória nº 1.134, de 25.08.2022, que abriu crédito extraordinário no orçamento federal no valor correspondente ao auxílio, e a Portaria Interministerial MDR/MMFDH nº 09, de 26.08.2022, que regulamentou os aspectos operacionais da transferência dos recursos da União aos entes concedentes.

Depois do veto do Presidente da República, em 2020, ao Projeto de Lei nº 3.364/2020, aprovado pelo Congresso Nacional, que previa R$ 4 bilhões para custear a queda de demanda e outros transtornos causados pela pandemia da COVID-19 aos transportes públicos, era necessária e urgente uma nova iniciativa para, ao menos, mitigar os enormes prejuízos suportados pelo setor — os quais, destaque-se, só se agravaram nos últimos meses, com a manutenção da demanda reduzida e a variação extraordinária dos preços dos combustíveis no mercado interno, acompanhando o que ocorre internacionalmente. Como o diesel representa, em condições normais, cerca de 30% dos custos de operação dos serviços de ônibus, a variação do seu preço nos últimos doze meses (quase seis vezes a inflação do período) representou inquestionavelmente um impacto negativo substancial no equilíbrio econômico-financeiro das concessões e permissões em execução.

Então a EC nº 123/2022 seria uma boa notícia? Sem dúvida, mas é preciso ter o cuidado de interpretá-la no sentido mais adequado à finalidade que inspira, neste ponto, a sua promulgação: proporcionar alguma sobrevida ao transporte público coletivo (quer seja urbano, semiurbano ou metropolitano), dada a notória incapacidade econômico-financeira dos municípios e demais entes delegantes. Do contrário, ter-se-á uma medida cheia de boas intenções, mas, na prática, ineficaz.

Na redação literal do art. 5º, IV, da EC nº 123/2022, fica estabelecido que os recursos serão “utilizados para auxílio no custeio ao direito previsto no §2º do art. 230 da Constituição Federal”, ou seja, das gratuidades no transporte aos usuários com idade igual ou superior a 65 anos. Essa referência a um grupo vulnerável — que possui, sem dúvida, um apelo social (e eleitoral) — não deve obscurecer o real conteúdo e a real finalidade da medida. O escopo da EC nº 123/2022, no que tange o transporte público, é a própria manutenção de tais sistemas, e não a mera subvenção a um grupo restrito de usuários. Esse aspecto é reconhecido pela Portaria Interministerial nº 09/2022, que deixa claro que o auxílio foi instituído “em razão do estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais dela decorrentes” (art. 1º).

E por que isso é importante? Porque, de regra, as concessões de transporte público coletivo celebradas após o advento da Constituição de 1988 já consideram, na sua estrutura econômico-financeira, a gratuidade às pessoas com idade igual ou superior a 65 anos. Ou seja: o custeio a tal categoria de usuários não integra, como um item específico, a equação econômico-financeira de tais contratos. Tal gratuidade impacta a equação econômico-financeira das concessões e permissões de forma difusa, como um subsídio cruzado geral de matriz constitucional. Essa particularidade poderia levar à argumentação — para nós equivocada, mas ainda assim possível — de que não há (ou não pode haver) um desequilíbrio econômico-financeiro referente aos usuários com idade igual ou superior a 65 anos, pois todas as propostas apresentadas em licitações posteriores à promulgação da Constituição de 1988 necessariamente consideraram a existência prévia de tal gratuidade, precificando-a. Tal raciocínio poderia impedir o cumprimento da finalidade da EC nº 123/2022, que, corretamente entendida, é, insista-se, proporcionar algum alívio financeiro aos prestadores privados dos sistemas urbano, semiurbano e metropolitano.

Indo além, o texto da EC nº 123/2022 estabelece que o benefício “será concedido em observância à premissa de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão do transporte público coletivo (…)” (art. 5º, §4º, II). Isso pode ser interpretado no sentido de que só serão permitidos os repasses às concessionárias que estejam em situação de desequilíbrio econômico-financeiro reconhecido pela administração, ou seja, dotado de liquidez, certeza e exigibilidade em razão de decisão do poder concedente. Não são incomuns os casos em que o Poder Público se recusa a reconhecer administrativamente os desequilíbrios sofridos pelas operadoras, ou não tem condições de o fazer; nessas hipóteses, poderia haver alguma resistência para transferir às empresas os recursos decorrentes da EC nº 123/2022, atrasando injustificadamente, ou mesmo inviabilizando, o atingimento da finalidade do auxílio. Isto, naturalmente, não pode ocorrer.

A EC nº 123/2022, com efeito, institui a presunção de que o problema dos combustíveis, aliado aos rescaldos da pandemia, causou um impacto negativo significativo nos sistemas de transporte público coletivo urbano e que a sua solução é urgente; e, como essa decisão foi tomada em nível constitucional pelo Congresso Nacional — no exercício legítimo do poder constituinte derivado —, ela suplanta eventual juízo local em sentido contrário. Assim, não é possível que um município negue a transferência dos recursos recebidos sob a EC nº 123/2022 às operadoras sob o argumento de que não existiria certeza, no plano administrativo, quanto ao desequilíbrio sofrido por essas últimas. O desequilíbrio, repise-se, no caso da EC nº 123/2022, é constitucionalmente presumido, assim como a urgência na sua concessão. Na hipótese remota de haver um superávit na operação de uma concessionária beneficiada com o auxílio, a aferição do eventual montante a ser devolvido (ou compensado) pelas operadoras deverá ser identificado a posteriori, em processo administrativo próprio e garantidos o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa às empresas (CF, art. 5º, LIV e LV).  

Há, ainda, o problema dos créditos das operadoras constituídos em processos judiciais. Já defendi, em artigo tratando do art. 9º da Lei nº 12.587, de 03.01.2012 (a “Lei de Mobilidade Urbana”)[1], que as decisões judiciais que reconheçam créditos das operadoras de serviços públicos de transporte coletivo, por tratarem do direito social ao transporte (art. 6º da Constituição), não se submetem ao regime de precatórios, a exemplo do que vem sendo pacificamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência às demandas envolvendo outros direitos sociais, como a saúde e a educação. Daí porque os recursos derivados do auxílio de que trata a EC nº 123/2022 são plenamente acessíveis também a partir de decisão judicial que reconheça créditos das operadoras de transporte ou condene a Administração Pública ao reequilíbrio dos contratos de concessão ou permissão. Lembre-se de que sistemas desequilibrados podem se tornar indisponíveis à população, com prejuízos incalculáveis ao interesse público. Em verdade, trata-se de uma urgência que, antes mesmo da EC nº 123/2022, foi estabelecida com ênfase pela Constituição de 1988: primeiro, ao qualificar o transporte como um direito social (art. 6º), e, segundo, ao fixar o seu caráter essencial (art. 30, V).

O critério de rateio entre os municípios, para fins de distribuição do auxílio instituído pela EC nº123/2022, também não pode deixar dúvidas: a EC fala em habitantes com 65 anos ou mais, e não “usuários”, “usuários cadastrados”, ou “usuários transportados” etc. Não se trata de um jogo de palavras. O número de usuários com 65 anos ou mais cadastrados (em sistemas de bilhetagem eletrônica, por exemplo), ou ainda efetivamente transportados em dado período, é com certeza sensivelmente menor que o número absoluto de habitantes do município pertencentes a tal grupo. Apelar a essa diferença poderia produzir a seguinte situação: o município receberia da União os valores correspondentes ao total de habitantes com 65 anos ou mais (segundo estimativas do Data-SUS), mas repassaria às operadoras o valor correspondente aos usuários nessa faixa etária cadastrados ou efetivamente transportados, apropriando-se da diferença.

Essa solução, à luz da EC nº 123/2022, não é juridicamente possível. Em primeiro lugar, porque tais recursos têm uma destinação constitucional específica. O art. 5º, §4º, III, da EC nº 123/2022, estabelece expressamente “a necessidade de que o aporte se vincule estritamente à assistência financeira para a qual foi instituído”. Da mesma forma, a Portaria Interministerial nº 09/2022 determina que os recursos disponibilizados pela União “deverão ser aplicados exclusivamente para auxiliar no custeio do direito previsto no art. 230 da Constituição Federal”. De outro lado, o art. 11 do mesmo ato normativo estabelece que os montantes disponibilizados e não utilizados deverão ser devolvidos pelos municípios. Isto reforça o óbvio: os recursos se destinam a subsídios às operadoras e não podem ser utilizados, nem sequer parcialmente, para outras finalidades.

Em segundo lugar, deve-se destacar que grande parte dos municípios brasileiros não possui cadastro de usuários completo ou atualizado, ou não mantém o registro da quantidade de passageiros transportados com 65 anos ou mais. Aliás, a maioria desses municípios não conta com recursos de tecnologia da informação para manter ou instituir rapidamente um cadastro ou controle de passageiros transportados. Ainda mais se considerarmos que, como o prazo para requerimento do auxílio é o dia 09 de setembro próximo, é virtualmente impossível implantar um cadastro de usuários ou controle de passageiros transportados até tal data, de forma que, a se admitir tal exigência (a qual não encontra, destaque-se, amparo normativo), estar-se-ia esvaziando a finalidade da EC nº 123/2022 e deixando de fora da sua cobertura grande parte dos sistemas de transporte coletivo urbano do país, exatamente aqueles menos aparelhados e que, portanto, mais precisam do auxílio. Se nem a União, na tarefa de distribuir os recursos, está constitucionalmente autorizada a alterar o critério de distribuição por habitantes na faixa etária de 65 anos ou mais, com muito mais razão não poderão fazê-lo os entes delegantes.

Indo além, o chefe do executivo (prefeito ou governador) que, por culpa ou dolo, deixar de solicitar, no prazo já mencionado (09 de setembro de 2022), os recursos do auxílio de que trata a EC nº 123/2022, pode ser responsabilizado por ato lesivo ao patrimônio público local (Lei nº 4.717, de 29.06.1965) ou, conforme o caso, por ato de improbidade administrativa, na medida em que estará atuando de forma contrária ao erário e à realização do direito social ao transporte (e violando, no caminho, toda uma principiologia da administração pública brasileira consagrada no art. 37, caput, da Constituição).

A disponibilidade e a qualidade dos serviços de transporte coletivo urbano dependem da sustentabilidade econômico-financeira destes, e não é dado ao seu titular prescindir das fontes de recursos disponíveis. Já é hora de chamar à responsabilidade os gestores públicos despreocupados com o financiamento do transporte urbano.

A EC nº 123/2022 fala, ao lado da já citada premissa do equilíbrio econômico-financeiro, também em “diretrizes da modicidade tarifária” (art. 5º, §4º, II). Isto não pode querer dizer que, com a concessão do auxílio às operadoras, o município estará isento de garantir os mecanismos contratuais de revisão da tarifa de remuneração (reajuste, revisão ordinária e revisão extraordinária), que poderão ter reflexos diretos na definição da tarifa pública. É dizer: o auxílio emergencial federal não escusa os municípios do dever de revisar a tarifa a ser cobrada dos usuários, quando não existir outra forma de garantia da remuneração dos serviços. Isso se aplica, com mais força, àqueles entes delegantes que defendem — de forma contrária à dicção expressa da Lei de Mobilidade Urbana (art. 9º) — a exclusividade da tarifa pública na remuneração dos serviços de transporte público coletivo urbano.  O auxílio de que trata a EC nº 123/2022 é emergencial e não exclui ou elimina os deveres de aferição e manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos ao longo de toda a sua duração.

Por fim, é importante destacar que a EC nº 123/2022 torna muito difícil a posição daqueles que defendem a inconstitucionalidade ou ilegalidade da concessão de subsídios às operadoras de transporte coletivo urbano no Brasil. O direito destas últimas à concessão de subsídios, em caso de déficit de cobertura da tarifa de remuneração pela arrecadação da tarifa pública, que já estava consagrado pelo art. 9º da Lei de Mobilidade Urbana, acima referido, ganha agora status constitucional expresso. Talvez esse seja o grande e virtuoso efeito de longo prazo que advirá da EC nº 123/2022.

Escrito por:

Amauri Saad
Doutor e mestre em direito administrativo pela PUC/SP. LL.M. pela University of Toronto. Sócio de Siqueira Castro Advogados.


[1] Ver o meu: “Subsídios em mobilidade urbana: direito dos delegatários e dever do poder concedente (considerações a partir do art. 9º da Lei Federal nº 12.587, de 03.01.2012)”, Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 19, n. 74, p. 9-40, abr./jun. 2021. Disponível em: https://smal.lu/N7ihu.