28 de janeiro: Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo

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No âmbito do direito penal, reduzir alguém à condição análoga à de escravo, que é crime definido no art. 149 do Código Penal, significa submeter a pessoa “a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Mas qual é a interpretação atual do dispositivo, considerando todo o contexto atual em que a presença dos órgãos de controle é maior do que eram quando da promulgação do Código Penal? 

Julgamento de 2012

Há cerca de 10 anos, em março de 2012, foi realizado um emblemático julgamento pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, no qual ficou esclarecida uma questão de enorme relevância para o combate ao trabalho escravo no país (STF. Plenário. Inq 3412, Rel. p/ Acórdão Min. Rosa Weber, julgado em 29/03/2012).

Na ocasião, assentou-se que, para a configuração do crime do art. 149 do CP, não seria necessária a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção. Isso porque, segundo a Corte, a escravidão em tempos modernos é mais sútil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. 

O tratamento do trabalhador como “coisa” e não como pessoa humana pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, como é o direito ao trabalho digno.  Assim, o simples fato de não ter havido o cerceamento do direito de locomoção dos trabalhadores não denota ausência de tipicidade.

Deve ficar bastante claro, todavia, que não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo, mas somente aquelas que submetem os trabalhadores a:

(i) trabalhos forçados;
(ii) jornadas exaustivas;
(iii) condições degradantes de trabalho, nos termos do tipo penal tratado.

Desde então, o Superior Tribunal de Justiça passou a replicar o entendimento, ressaltando que a restrição à liberdade de locomoção do trabalhador é apenas uma das formas de cometimento do delito, mas não a única.

Equívocos

Brasil a fora, juízes e desembargadores, por vezes de forma analógica, ainda entendem que a caracterização do delito exige, de algum modo, a restrição da liberdade de locomoção. Por essa razão, esporadicamente, o tema retorna à pauta dos Tribunais Superiores. De modo geral, as decisões se baseiam no argumento de que o tipo penal está inserido no capítulo VI do Título I do Código Penal, ou seja, “Dos crimes contra a liberdade pessoal”, necessitando de algum meio – qualquer que seja – de cerceamento da liberdade.

Nesse contexto, em 2020, o STJ novamente foi chamado a decidir a questão e, sem hesitar, reiterou a jurisprudência acima mencionada para restabelecer a condenação de um fazendeiro que havia sido revertida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) com base na imprescindibilidade da supressão da liberdade da vítima para caracterização do tipo penal.

Segundo o TRF1, diante da ausência da restrição de liberdade da vítima, vislumbrava-se apenas a ocorrência de violações a normas trabalhistas as quais deveriam ser combatidas no âmbito da Justiça do Trabalho, mas não reclamavam a interferência do Direito Penal.

A tese, contudo, não prosperou. No RESP 1.843.150/PA, sob relatoria do Min. Nefi Cordeiro, ficou sedimentado que a demonstração de diversas irregularidades, como o não fornecimento de água potável, péssimas condições de conforto e higiene, ausência de banheiros para os trabalhadores e alojamentos de palha e lona no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, com exposição a riscos, eram suficientes para caracterizar condições degradantes de trabalho e, portanto, para estar configurada a prática do crime (REsp 1843150/PA, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 02/06/2020).

Afinal, depreende-se da literalidade do tipo penal que o delito aqui analisado é crime de ação múltipla ou tipo misto alternativo. Isso quer dizer que ao prever quatro condutas alternativas, o que se denota do uso da expressão “quer” (“quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador”), sejam elas realizadas de modo isolado ou cumulativo, caracteriza-se o crime de redução à condição análoga à de escravo.

Vale dizer que os Tribunais Superiores, quando fixaram a competência da Justiça Federal para processar julgar o crime do art. 149 do CP, assentaram que a topografia do crime, ou seja, sua posição no Código Penal, não é fator preponderante, minando a fundamentação geralmente empregada para exigir o requisito típico da restrição da liberdade. 

Diante da recente reafirmação do entendimento pelo STJ, espera-se que juízes e tribunais se ajustem à solução jurídica adotada, nitidamente mais adequada, tanto do ponto de vista técnico quanto sob a perspectiva do compromisso com a erradicação do trabalho em situação análoga à escravidão. 

Artigo de Lívia Fabbro Machado, advogada da área Penal Empresarial da SiqueiraCastro.