O instituto da adoção, desde os primórdios, foi permeado de conceitos e opiniões polêmicas em torno dos seus requisitos e critérios, o fez visando a proteção e os cuidados de crianças e adolescentes. Por envolver a constituição de novas famílias, a proteção e cuidado de menores, seus debates tendem a ser calorosos e controversos.
Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o enfoque da adoção deslocou-se para a proteção dos menores, não mais partindo da preocupação em garantir descendência a uma família que não a tem ou para transmitir uma herança, como outrora, mas sim de proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimento da criança.
Atualmente, a adoção vai além de requisitos técnicos. Passou a ser um instrumento social e afetivo que busca, em sua essência, diminuir ou minimizar as perdas sofridas pelas crianças institucionalizadas. Como toda e qualquer prática social, reflete crenças, valores e os padrões de comportamento construídos historicamente.
Por muito tempo, o principal objetivo da adoção no Brasil foi atender aos interesses dos casais que não podiam ter filhos biológicos, deixando em segundo plano o interesse dos adotados. Isso fica claro quando se observa que até a lei de legitimação adotiva, editada em 1965, a legislação fazia distinção em matéria de herança, excluindo o filho adotivo do direito de sucessão hereditária.
É importante enfatizar o caráter excepcional da adoção, que não pode ser tratada como alternativa à ausência de políticas sociais. Também é preciso lembrar que, por trás de uma criança abandonada ou abrigada em alguma instituição, existe uma família também abandonada a demandar políticas públicas de combate à pobreza. (SANTOS, 2000, apud, FIGUEIRÊDO, 2002, p.29-30).
Dentro das polêmicas envoltas pelo instituto, a adoção por casais homoafetivos se apresenta como uma das mais discutidas na doutrina. Tal constituição familiar deve ultrapassar a esfera do senso comum, devendo ser analisada pelo prisma da legalidade, além de ser deferida com base em fatos concernentes aos princípios da igualdade e do melhor interesse da criança.
Sabemos que milhares de crianças aguardam nas filas em nosso país. Além disso, é fato que o número de “pretendentes” tem aumentado. A burocracia em torno da adoção sempre gerou conflitos e desgastes, o que tem causado atentados à legalidade.
Neste ponto, cabe-nos trazer o entendimento do Ilustríssimo Desembargador do TJPE e coordenador da Comissão Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária de apoio à Frente Parlamentar da Adoção, que elaborou o projeto da Lei Nacional de Adoção, que resultou a Lei 12.010/2009, Luiz Carlos de Barros Figueiredo. Ele afirma que:
Vê-se logo que algumas exigências têm que ser cumpridas, seja para garantia da criança de que terá bons pais adotivos, seja para os adotantes, no sentindo de que podem ficar absolutamente certos de que não correm riscos de no futuro perderem seu filho para os pais biológicos, parentes destes, ou para quem quer que seja. Uma listagem de documentos de uso comum e uma entrevista psicossocial (eventualmente visitações domiciliares e/ou participação de cursos para pais adotivos) não podem ser vistos como fatores complicadores da vida do adotante, bastando se comparar que para uma filiação biológica leva-se 09 (nove) meses entre o início da gestação e o nascimento.
(FIGUEIREDO. 2002. p. 33)
O artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu parágrafo único inciso IV, proclama que o interesse superior da criança e do adolescente é um princípio fundamental para definir a adoção. Fica notório que o legislador busca resguardar que a criança e o adolescente estejam sempre protegidos em face às expectativas de terceiros. Além disso, o artigo 43 do ordenamento mencionado ressalta que a adoção só será deferida quando apresentada reais vantagens para o adotando e necessariamente fundar-se em motivos legítimos.
A legislação, em momento algum, restringe a adoção por dois homens ou duas mulheres. O que a lei remete, em todo o seu conteúdo, é ao bem-estar da criança ou do adolescente, priorizando que esteja em local seguro e adequado ao seu desenvolvimento. Isso afasta os preceitos arcaicos e preconceituosos de alguns juristas de base religiosa que insistem em negar a possibilidade de adoção homoafetiva, pois “expõe” a criança a uma convivência antijurídica, e no seio alheio ao da família que eles têm como única e verdadeira: a família heteroafetiva.
A busca por um lar
Para adoção, o Judiciário acompanhará todo o processo com o aparato da equipe interprofissional, formada por psicólogos e assistentes sociais, e no artigo 227, § 5º da Carta Magna, que estabelece este preceito constitucional, demonstrando o cuidado que se deve ter. Assim, quem deseja adotar, deverá necessariamente passar por todo o procedimento jurídico.
O abandonado, antes de qualquer questão análoga ao gênero, busca por um lar, um referencial, muitas vezes até uma figura paterna ou materna. Entretanto, não será apenas nas questões de gêneros que identificaremos tais facetas.
Observamos nas famílias atuais que os papéis geralmente canalizados pela sociedade – pai = homem e mãe = mulher – muitas vezes se invertem, tendo o homem a figura materna, enquanto a mulher representa o lado paterno, de acordo com os estereótipos padrões da sociedade. Portanto, não será por este motivo que se privará os pais homossexuais de usufruir este direito.
A adoção vai além de “dar” filhos a quem não os têm, e sim “dar” uma família, um lar, que deve oferecer a criança e ao adolescente a oportunidade de ter sua inserção na sociedade de maneira singular, deixando de ser um institucionalizado coletivo e sem referências.
O que devemos garantir a criança e ao adolescente é uma família livre de estereótipos. Em verdade, o que bem se espera da instituição familiar vai além das discussões de gênero. O foco deve ser o primordial: amor, afeto e carinho que serão entregues à criança, a qual, em regra, não se apegará a orientação sexual de seus pais, mas ao caráter e seus sentimentos.
Na prática, famílias homoafetivas, unilateral ou mesmo bilateral se mostram tão benéficas quanto às tradicionais famílias heteroafetivas. Em ambas as adoções se faz necessário a consciência de que há uma ruptura de paradigmas, pois é esse fato que lhe dará segurança para educar a criança/adolescente passando a ideia de que, apesar das diferenças, se é igual em amor e afeto.
A família homoafetiva
Ao analisar cadastros de adoção no Brasil, observa-se que os casais homoafetivos são os que menos se apegam a requisitos que tem dificultado e aumentado o número de espera nas filas de adoção, tais como cor da pele e idade e até mesmo grupos de irmãos.
A família homoafetiva vem ganhando espaço e sendo solidificada. Ela não pode ser marginalizada pelo Estado, tutor das mais indeterminadas formas de família. A própria Constituição reza que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. É na família que o ser humano se desenvolve e se prepara para a vida fora do ninho, ou seja, a família é um primado, é a base de toda a sociedade. É nela que os integrantes da sociedade se desenvolvem e se transformam.
Tal realidade não poderá ser negada com base em preceitos ou dogmas oriundos de preconceitos do que não se conhece. Maria Berenice Dias afirma que o sonho de todos é o alcance da felicidade, ao passo que os direitos fundamentais constitucionalmente reconhecidos visam, no final das contas, assegurar o direito fundamental à felicidade. (DIAS, 2010, p. 118).
O amor, que não comporta barreiras e nem se curva ante o preconceito, é o responsável por todos os sentimentos, aptidões emocionais e desejos comuns aos indivíduos (independente da atração sexual que os movimenta). Vale de exemplo o preparo para a maternidade, para a paternidade, bem como do desenvolvimento da estabilidade e do compromisso afetivo mútuo, que formam uma base familiar.
Ousando, hoje, dizer o seu nome – ao contrário do que percebera Oscar Wilde na sua época vitoriana -, o amor homossexual exige dos Estados, fundamentado na base maior da dignidade, da igualdade e dos direitos humanos, os mesmos efeitos jurídicos dos vínculos afetivos tidos como convencionais. Preconceitos com relação à homossexualidade (os de natureza religiosa, em especial) sempre se mostraram como principais entraves à regulamentação da união homafetiva (em países formalmente democráticos, como o Brasil) e à justa interpretação e aplicação das leis através da jurisprudência. (SILVA JUNIOR. 2010. p, 83).
Como sabido, as divergências, nesta questão, são evidentes. Os contrários tem como fundamento o conservadorismo da norma e o atávico preconceito, sem interpretar no contexto atual do Direito das Famílias.
Suscitam os leigos que crianças educadas no seio familiar análogo ao heteroafetivo tendem a desenvolver distúrbios psicológicos, e que estes serão vítimas de preconceito. Mas qual ser humano, em seu desenvolvimento natural, não está sujeito a sofrer preconceitos? O próprio fato de a criança viver em um abrigo já não é um grande promissor de distúrbios psicológicos?
Dados e pesquisas
Em pesquisa desenvolvida pela organização americana National Longitudinal Family Studies, filhos de casais de lésbicas têm tendência a serem mais felizes e saudáveis que os educados por pais héteros. Publicada pelo jornal de Estudos Lésbicos, a pesquisa levou 22 anos para ser concluída e apontou que filhos de lésbicas americanas se sentem menos atingidos por atitudes preconceituosas.
O estudo também ressaltou os problemas que os filhos de pais heterossexuais enfrentam mais comumente: 70% vão mal na escola e 50% desenvolvem problemas associados ao alcoolismo. (WEBER, 2004, p.81).
Da mesma forma que se pode sofrer preconceito por ter dois pais ou duas mães, se sofre por não ter nenhum dos dois e ser “mais um” numa sociedade tão excludente. Não podemos esquecer que a primazia da adoção é o bem-estar social e emocional da criança e do adolescente.
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Muitas vezes, quando suscitado o deferimento desta modalidade de adoção, o questionamento em torno do ambiente que está sendo oferecido à criança, vem à tona, sob a justificativa de que o mesmo ofende, e expõem a criança a uma vivência imoral, obscena e persuasiva, como se o simples fato de ser homossexual fosse caracterizador de uma personalidade pervertida e promiscua.
Não se pode, por mero pudor, desamparar o direito de crianças e adolescentes crescerem em uma unidade familiar, elencada como um dos direitos fundamentais das crianças, reconhecendo ser dever da família, da sociedade e do Estado garantir entre outros direitos os da convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Não há pesquisa científica que aponte características negativas em uma criança ser educada por famílias homoafeitvas, pelo contrário, as poucas pesquisas realizadas nesta área nos leva para uma afirmativa totalmente oposta, os profissionais apontam para a questão do afeto, da sólida estrutura emocional e do cuidado, como fundamentais para o desenvolvimento saudável da criança e do adolescente, nos remetendo a brilhante explanação de Ângelo B. Pereira: “Um pai não é homossexual, nem heterossexual, nem médico, nem bicheiro. Pai é pai e nada mais.” (BUCHALLA, 2001, p. 68).
Por que a maioria dos que se percebem e se sentem homossexuais são frutos de famílias tidas “convencionais”? Por que razão, o temor exagerado do deferimento da adoção (e pois, da futura educação) de criança/adolescente a um casal do mesmo sexo, justificado pela possibilidade de a prole se tornar homossexual – como se a orientação sexual fosse um processo de simples “tornar-se”? (SILVA JUNIOR, 2010, p. 122).
Outra questão enumerada, muitas vezes, por quem não concorda com a modalidade de adoção, é o fato de o meio interferir na formação afetiva dos filhos, como se o fato de conviver com homossexuais, deixasse a criança propensa a se tornar um homossexual também, o que não é verdade, pois se assim fosse, não teríamos homossexuais, em virtude de os mesmos serem oriundos de famílias heterossexuais.
Então, também não seria uma afronta, os homossexuais serem criados por heterossexuais? Eis a questão, a homossexualidade ainda permanece adoecida no imaginário de grande parte da sociedade.
Quem possui um lar, independentemente, dos defeitos que o mesmo possa ter, sabe da importância deste na sua formação individual. É no ninho que nos sentimos seguros e conseguimos muitas vezes reunir forças, e lutar contra as indiferenças sofridas ao longo da vida.
A tese de que os filhos de homossexuais são bem mais livres dos preconceitos é evidente nas experiências já observadas ao longo dos tempos, o fato de ter o indivíduo uma criação homoafetiva não fará dele um ser problemático ou traumático e sim que naturalmente este será um ser socialmente evoluído, não por terem sido criados por gays ou lésbicas, mas pelo fato de aprenderem a conviver e respeitar as diferenças, sendo mais livres dos preconceitos, e ensinados em observar como alicerces de sua criação o respeito e amor ao próximo, independente das escolhas pessoais de cada indivíduo.
Assim, com a evolução social e jurídica sobre o tema, passou-se a observar a adoção como forma constitutiva do vínculo de filiação e, nos dias de hoje, a filiação adotiva é uma relação jurídica, baseando-se na presunção de uma realidade não biológica, mas afetiva, vista como um fenômeno de amor e afeto entre as partes, que deve ser incentivada pela lei.
Ademais disto, em decorrência da demanda social em que implicou a evolução jurídica sobre tal tema, em especial com o advento da Constituição federal de 1988, foram trazidos aos holofotes os princípios da igualdade e da proibição de discriminação entre a filiação, visando o melhor interesse da criança, da cidadania, da dignidade da pessoa e princípio da afetividade, elevados como sujeitos de direitos fundamentais, alvo da proteção integral da família, do Estado e da sociedade, que afiançaram a igualdade entre a filiação biológica e socioafetiva.
Importante ressaltar que a adoção por casais homoafetivos passou por grandes dificuldades de aceitação ante o preconceito social, entretanto, tal situação já está superada, ainda que não plenamente.
Saliente-se neste sentido que o conceito de família amplia com o passar dos anos, através da formação de novos núcleos familiares, acompanhando a evolução e demanda da sociedade, destacando que a legislação pátria também acompanha tal evolução, conforme mencionado no presente artigo, visando suprir as reais necessidades da sociedade.
Com as alterações na sociedade ao longo dos tempos e a mudança na formação familiar brasileira, as relações homoafetivas foram aceitas por parte da sociedade, ainda que de forma muito incipiente. O que um dia já foi visto como patologia, hoje deve ser tratada com respeito e atenção maiores, sendo necessária a adequação das normas e evolução jurídico-social para acompanhar as mudanças na sociedade.
Conclusão
Conclui-se, então, a necessidade da legislação brasileira concretizar e abranger em seu texto, de forma positivada, a adoção homoparental, suprindo os obstáculos existentes de forma a apoiar casais homoafetivos, fato que traria grande contribuição para agregar família à menores que vivem em abrigos e instituições visto que, esses, não substituem laços de afetividade familiares essenciais para a formação da personalidade do indivíduo. Observando as garantias em um processo justo, sendo analisado, individualmente, a situação de forma interdisciplinar de cada criança e/ou adolescente e os interessados na adoção, buscando trata-los com a máxima igualdade possível.
Por fim, cabe-nos destacar que sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. E neste sentido vem caminhado o ordenamento jurídico, conferindo família interpretação tão abrangente quanto o instituto requer.
Artigo escrito em conjunto por: Camila Ferreira, Luiz Fernando Brasil e Mariana Campelo.
FONTES
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